Invocação
Ter todos esses sentimentos indecifráveis aos outros sempre me deu muito trabalho. Com o tempo eu aprendi a nem tentar compartilhá-los, mas, em vez disso, usá-los sempre para tentar dar aos outros o que tanto me falta. Uso-os para imaginar os sentimentos alheios com a maior precisão possível – o que também não é grande coisa, pois “a alma de outrem é outro universo com que não há comunicação possível” ¹, mas tem sua utilidade, já que transforma totalmente qualquer diálogo numa troca mais rica. Eu sofro muito no meio de conversas banais sobre coisas fúteis e irrelevantes e tentar fazer um rascunho da alma de quem fala comigo acaba me livrando dessa tortura e me conduzindo a momentos mais agradáveis. Mas o fato é que eu continuo totalmente só. Certamente tão só quanto aqueles que desabafam comigo.
Eu me lembro de ter encontrado o perfeito alívio há muitos anos. E me lembro bem da sensação incrível que tive. Falar com Deus era uma experiência totalmente nova, tão diferente de tudo que já havia experimentado: era falar com quem me conhecia bem melhor que eu mesma; era falar com quem compreendia completamente a intenção de minhas palavras ainda que mal colocadas; era falar com quem tinha interesse em meus mudos sofrimentos tão invisíveis a todos os demais. Falar com Deus é isso. É ter um ouvinte sinceramente interessado em nós que identifica e conhece cada sentimento e dor que lhe apresentamos e que não nos ouve com um coração já inclinado a maus julgamentos injustos. A coisa toda era tão linda que me parecia um sonho. Eu continuava sendo a ilha de sempre, porém, já não me sentia plenamente impercebível.
Quando começo a me ver novamente solitária entre as pessoas (o que é muito comum para um temperamento como o meu), já sei que preciso entrar no meu quarto, como Jesus nos ensinou a fazer, fechar a minha porta e falar com o meu Pai que vê o que está oculto aos olhos dos demais. Quando me sinto de novo invisível como Agar, volto meus olhos para “El Roi” ², o Deus que me vê. Faço como Jesus, que se retirava para estar à sós com Deus. A oração conduz nossas almas cansadas até o coração de quem realmente nos ama e ama com perfeição. Orar é estar com quem realmente quer nos ouvir ³. É uma festa para um coração solitário, sufocado pelas falsas gentilezas humanas. Quem ainda não experimentou, deveria logo tentar. Jesus é Deus que se fez homem e ele entende os homens. Jesus calçou nossos sapatos e percorreu nosso caminho doloroso. Viveu nossas tristezas, foi tentado, julgado, injustiçado, mal compreendido e humilhado; ele também foi traído, sofreu a dor da morte de um amigo, se viu abandonado por seus próprios discípulos em seu momento de maior angústia. Ele sofreu tudo e não há dor que ele não conheça. Não há abandono ou solidão com que Jesus não se identifique. Ele sentiu as agonias de uma morte eminente e pavorosa e sofreu dores físicas também; Jesus apanhou, foi ridicularizado e cuspido e conspiraram contra ele; Jesus foi abandonado por aqueles que ele curou e libertou: ninguém sabe melhor que ele o que é ingratidão. Ele foi acusado de coisas que não fez e foi perseguido por invejosos; ele sofreu por fazer a coisa certa, conviveu com gente interesseira, amou os que lhe desprezavam. Se o que procuramos é um amigo que nos entenda completamente, esse amigo só pode ser Jesus! O alívio para o peso doloroso de uma vida solitária está a uma oração de nós!
"Eu te invoquei, ó Deus, pois me queres ouvir; inclina para mim os teus ouvidos, e escuta as minhas palavras."
Salmo 17:6
¹ Pessoa, F. Poesias Inéditas (1930-1935). Lisboa: Ática. 1955. (imp. 1990). p. 159.
² Gênesis 16:13,14
³ Salmo 17:6
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